terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Um cheirinho de alecrim ou uma luz de candeeiro pra atiçar nossos sentidos e nossa luta contra o cativeiro social



Katharine Ninive
20 de fevereiro de 2018

Erra feio quem pensa que arte e cultura não podem contribuir em nada para a reflexão crítica. Erra feio também quem cai na esparrela da indústria cultural de que a consequência é a causa, ou seja, o "péssimo" gosto musical da população, moldado por uma indústria do quanto pior melhor, é que geraria este tipo de indústria.

O desfile da Tuiuti teve o efeito de uma bomba na política e na cultura nacional e internacional, furando os obstáculos das instituições públicas e dos meios de comunicação brasileiros, numa capacidade de guardar informações de fazer corar de vergonha as nossas instituições, que tudo  vazam! Na segunda apresentação, mesmo com a redobrada censura política e mercadológica, o desfile não perdeu a majestade e continuou sambando na cara de todos aqueles políticos, empresários, banqueiros e mercadores da fé que dedicam todos os esforços para espoliar a população inclusive de sua alegria, de sua festa, de sua esperança e da capacidade de se emocionar.

O desfile da Tuiuti foi perfeito ao trazer fôlego novo pra esta população tão espoliada. De uma forma inesperada. Articulando, com fundamentação teórica, a escravidão de antes com as novas formas de escravidão a que estamos sendo progressivamente sujeitos, através da precarização do trabalho pela Reforma Trabalhista e através da ameaça da Reforma da Previdência que praticamente proclama a escravidão, assim como cantou a música O Samba do Crioulo Doido.

Como tentativa de reação para garantir uma saída pela direita para os golpistas, que não estão conseguindo alavancar nem a Reforma da Previdência e nem as intenções de voto, o exército é convocado e abre um portal dentro dessa frágil jovem senhora democracia, para um passado perigoso de um golpe civil-militar.

Um semelhante efeito Tuiuti ocorreu em plena Ditadura Militar brasileira, mas através da Revolução dos Cravos de Portugal, que derrubou a ditadura de Salazar, em 1974. Chico Buarque enxergou naquela Revolução a esperança por uma Revolução no Brasil e escreveu Tanto Mar, cuja primeira versão foi censurada no Brasil e gravada em Portugal:

Versão gravada em Portugal:

"Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente alguma flor
No teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera pá
Cá estou doente
Manda urgentemente algum cheirinho
De alecrim


Versão após a censura, lançada no Brasil só quatro anos depois, em 1978:

"Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente.
E ainda guardo, renitente
Um velho cravo para mim.

Já murcharam em tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente em algum
Canto de jardim.

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.

Canta a primavera pá
Cá estou carente
Manda novamente algum cheirinho
De alecrim!"

Para concluir, a linda letra do Samba Enredo da Tuiuti atualiza a nossa esperança de que é possível resistirmos. Com luta, com arte, com cultura, com educação, coletivamente:

Samba Enredo 2018 - Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

"Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor

Ê, Calunga
Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro Benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social!"

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