Marco Antonio Fidalgo Amorim
Katharine Ninive Pinto Silva
Emanuelle de Souza Barbosa
Grupo GESTOR – Pesquisa em Gestão da Educação e Políticas do Tempo Livre
A Educação a Distância (EaD) envolve cursos de diversos níveis e modalidades, tais como: Ensino médio e fundamental, voltados para adultos que não tiveram oportunidade de concluir estes níveis de ensino no tempo regulamentar; 2. Cursos de nível técnico, voltados para a formação profissional em nível médio; 3. Cursos de tecnólogos, voltados para a formação profissional em nível superior com um tempo de formação mais curta do que os bacharelados e licenciaturas; 4. Curso de Licenciaturas, que são as modalidades mais comuns na EaD, geralmente com a duração de quatro anos; 5. Bacharelados – também estão se tornando comuns na EaD, com duração de quatro anos; 6. Pós-Graduação, incluindo especialização latu Sensu, MBA, Mestrado ou Doutorado); 7. Cursos livres.
Além da variação dos níveis e modalidades de cursos EaD, também existe uma variação nos formatos em que se apresentam, podendo ser: 1. A distância (80% das aulas podem ser feitas pela internet e 20% através de encontros presenciais); 2. Semipresencial (graduações que exigem mais aulas em laboratório, costumam adotar esse modelo); 3. Presencial com atividades a distância (o MEC permite que até 20% das atividades sejam realizadas no modelo EaD).
De acordo com Kenski e Kenski (2017), a modalidade a distância apresenta cursos, em média, 50% mais baratos do que a modalidade presencial, sobretudo porque não precisam da mesma infraestrutura física dos cursos presenciais. Esse é um dos motivos pelos quais grupos de pais têm entrado na justiça por redução das mensalidades dos estabelecimentos de ensino durante a Pandemia de Covid-19, já que as aulas presenciais suspensas estão sendo substituídas pelo Ensino Remoto. Em várias decisões judiciais, houve determinação da redução dos valores das mensalidades, chegando a 25% de desconto (Clique aqui), enquanto durar a suspensão das aulas presenciais durante a pandemia. Mas, em alguns casos, a justiça voltou atrás da decisão, desobrigando escolas a realizarem o desconto (Clique aqui). Entre os argumentos dos estudantes e dos pais, reconhecendo que os cursos de EaD não têm os mesmos custos dos presenciais e que, no contexto da Pandemia, despesas com a manutenção da infraestrutura física foram reduzidas, esse valor deveria ser repassado como desconto nas mensalidades. Entre os argumentos dos donos dos estabelecimentos de ensino consta a manutenção do vínculo dos professores e de alguns funcionários, bem como os novos investimentos em tecnologia para viabilizar o Ensino Remoto.
De acordo com o Relatório do 3º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2020 (Clique aqui), “o crescimento dos cursos de ensino a distância (EaD) nas IES privadas foi responsável por 67,3% da expansão total das matrículas entre 2012 e 2018” (p. 273). Um aumento de 0,93 milhão de matrículas em 2012 para 1,88 milhão, em 2018. De acordo com o mesmo documento, “por outro lado, as matrículas nos cursos EaD das IES públicas reduziram de 182 mil para 173 mil no mesmo período” (p. 273). De acordo com Mattos e Silva (2019), a modalidade EaD foi amplamente incentivada pelo Banco Mundial como forma de baratear o acesso ao ensino superior: “[...] o Banco recomenda que, para ser formado o novo trabalhador, seja implantada a EaD e, por meio dela, utilizem-se as tecnologias da informação e comunicação (TICs)” (p. 10). Essa orientação do BM possibilitou a ampliação da privatização do ensino superior através da expansão das instituições privadas.
No apagar das luzes do Governo Temer, é publicada a Portaria nº 1.428, de 28 de dezembro de 2018 (Clique aqui), que permite que até 40% das graduações presenciais sejam a distância. Como contrapartida, as instituições precisam cumprir com regras de qualidade estabelecidas pelo Ministério da Educação, com nota mínima 4 no conceito de curso. Além disso, a Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Clique aqui) (Reforma do Ensino Médio), altera o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Clique aqui), definindo que o currículo será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos (linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; ciências humans e sociais aplicadas e formação técnica e profissional). Em relação ao itinerário formativo formação técnica e profissional, a critério do sistema de ensino, é garantida “a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade”. Além disso,
§ 11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório conhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
[...]
VI – cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.
Essas práticas tendem a flexibilizar a oferta de educação abrindo uma avenida de oportunidades para o setor empresarial investir na área e obter lucros com a prestação de serviços educacionais.
Possibilidades e limites da EaD considerando a questão do trabalho docente
Logo após os primeiros óbitos por COVID-19 no país e a suspensão das aulas presenciais em todos os níveis de ensino, foram lançadas as seguintes normas de caráter temporário: as Portarias do MEC (342/2020; 343/2020; 345/2020 e 395/2020), que normatizam a suspensão ou substituição de aulas presenciais por aulas remotas (com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação); a Portaria CAPES nº 36/2020 (Clique aqui), que suspende os prazos de defesa de dissertações e teses e prevê a possibilidade delas acontecerem por meio de tecnologias de informação e comunicação; a Medida Provisória nº 934/2020 (Clique aqui), que trata da redução do número mínimo de dias letivos. Artigo de Horácio Wanderlei Rodrigues analisa a questão do direito educacional em tempos de pandemia (Clique aqui). Seguindo a mesma direção, em abril, o Movimento Todos pela Educação emitiu Nota Técnica (Clique aqui) defendendo o ensino remoto enquanto medida importante para reduzir os efeitos negativos da interrupção educacional no ensino básico.
Tanto os documentos do Governo Federal, quanto o do Movimento Todos pela Educação, apresentam simetria com a proposta de desenvolvimento de sistemas educacionais abertos e flexíveis indicada pela Coalizão Global da Educação (Clique aqui). Capitaneada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a coalizão, formada no início de março de 2020, é composta por organismos multilaterais e por corporações privadas como Microsoft, Google, Facebook, Zoom, Huawei, Tony Blair Institute for Global Change, dentre outras. Tal Coalizão busca “desbloquear” soluções para minimizar a interrupção educacional global em função da Pandemia. Para tanto, propôs a "entrega de conteúdo" a partir, principalmente, da ampliação das práticas de aprendizagem à distância, com slogans que vêm povoando o imaginário das sociedades, como: a escola ou a universidade não podem parar; o ano letivo não pode ser perdido e nossa preocupação é com a escolarização de bilhões de jovens.
De acordo com Freitas (2018), iniciativas como essa apontam para uma disputa de narrativas que constituem projetos políticos oportunistas de reformadores empresariais para a educação. De acordo com o autor, essas iniciativas buscam abocanhar, cada vez mais, fartas porções do fundo público para legitimar, a título de excepcionalidade do momento pandêmico, seu modelo educacional. Nestes termos, é certo que a Coalizão Global de Educação, em conjunto com fundos financeiros de investimentos e corporações transnacionais, através da mercadorização das plataformas digitais para o ensino remoto, possui objetivos estratégicos em prol da criação do grande mercado mundial de educação via empresarialmente tecnológico. Frente a isto, é de se questionar quais serão os rebatimentos e limites impostos para o trabalho docente, a partir desta "virada para dentro das telas".
Inicialmente, de acordo com o Perfil do Professor da Educação Básica (CARVALHO, 2018), de cerca de um milhão e trezentos mil professores do ensino básico público, quase 47% (614.909) são temporários, terceirizados ou com contrato CLT. Com a Pandemia, estes trabalhadores estão sujeitos a demissões. Demissões em massa estão ocorrendo durante a Pandemia também em Universidades privadas, como pode ser conferido através das seguintes notícias e reportagens: sobre a relação entre demissões em massa pelas instituições privadas e possibilidade de conversão acelerada para modalidade EaD, como sinalização para o desemprego estrutural dos docentes (Clique aqui), sobre a demissão em massa realizada pela Uninove, através de mensagem automática na internet (Clique aqui), bem como outros exemplos de demissões em massa, como a Rede Laureate (Clique aqui) e a Universidade São Judas Tadeu (Clique aqui). Além disso, de acordo com a Federação Nacional de Escolas Particulares (FENEP), em notícia veiculada em jornal (Clique aqui), foram demitidos, durante o contexto da Pandemia, até 300 mil professores, a maioria da educação infantil.
Além disso, atrasos, parcelamento de salários e gratificações, antecipação de férias, redução de carga horária do professor com consequente redução salarial, bem como suspensão provisória dos contratos, que estão ocorrendo nas redes básicas e superiores privadas, acarretam precarização do trabalho. O clima de insegurança afeta professores e trabalhadores da educação. Demissões em massa de terceirizados, vigilantes, merendeiras, funcionários de serviços gerais tanto de instituições públicas como nos estabelecimentos privados são facilitados, inclusive, pela suspensão dos contratos com empresas terceirizadas.
Outra questão é que as soluções on-line têm aumentado a pressão e o assédio sobre os professores com consequente intensificação do trabalho docente. Em trabalho recente desenvolvido pelo Grupo GESTOR – Pesquisa em Gestão da Educação e Políticas do Tempo Livre (Clique aqui), onde docentes que atuam nos diversos níveis e redes de ensino responderam a questionários, foram investigados quesitos como ausência de formação para o trabalho on-line, falta de equipamentos e estrutura e tempo demandado para realização das tarefas docentes. Dos 92 docentes que responderam aos questionários, 59,8% não recebeu nenhum tipo de formação, apenas 21,7% possuem ambiente de trabalho adequado, 92,4% utiliza equipamentos pessoais, quase 60% dos professores alegaram intensa jornada de trabalho e mais de 70% consideraram que o trabalho remoto está mais estressante que as atividades presenciais anteriores a pandemia.
Do ponto de vista deste modelo de intensificação, é preciso chamar atenção que universidades particulares, para barateamento dos custos, estão adotando um novo tipo de “ensalamento”, com supressão de turmas, de forma a compor, com maior quantidade de alunos, as salas virtuais. Além disso, Oliveira (2004) nos chama a atenção que os processos de reconversão do trabalho docente, que saltaram da rígida divisão de tarefas como marca do fordismo para formas flexíveis toyotistas, têm promovido imenso impacto nas relações de trabalho, intensificação da exploração do trabalho, precarização, desprofissionalização e proletarização docente.
Por fim, é de ressalva que além da exposição pública das suas residências, com rompimento da fronteira escola-casa, os docentes estão tendo seus dados pessoais alocados em data centers de corporações transnacionais o que, para além de colocar em risco sua privacidade e anonimato, podem ser utilizados para traçar e determinar perfis de consumo, e mais importante, exercer controle e vigilância sobre o trabalho, bem como engendrar comportamentos resilientes e despolitizados. Este mesmo efeito vem acontecendo em relação aos estudantes, como vem sendo a preocupação manifestada pela pesquisa Educação Vigiada (Clique aqui).
A questão pedagógica da EaD – mediações e processo de ensino/aprendizagem
É de destaque que o trabalho pedagógico vai além da simples entrega de conteúdos ou da mera transmissão de assuntos via parafernálias digitais. Trata-se de um processo organizado e estruturado por trabalhadores em educação licenciados, qualificados e subsidiados por princípios epistemológicos. De acordo com Pistrak (2011), “os conteúdos de ensino oferecidos às novas gerações têm o papel de armar a criança para a construção de uma nova ordem, com novos conhecimentos e concepções sobre a sociedade e sobre as lutas travadas pela humanidade no passado e no presente".
Neste cenário de pandemia, as questões visam somente os ritos de transmissão, onde espera-se que a máquina tecnológica (através da hiperconectividade e as diversas ferramentas como mensagens de texto, fotos, áudios, transmissão ao vivo, sala de reuniões, lives) cumpra o papel educacional entregando, com eficiência, os conteúdos aos alunos/clientes. Secundariza-se a discussão sobre a suspensão brusca, durante a pandemia, da interação humana face a face e da importância da convivência proporcionadas pelo ambiente acadêmico. Ademais, trata-se também de maneira menor, o debate acerca de como se garantir a assimilação/aprendizagem em tempos de isolamento social.
Não se pode também no momento atual minimizar o debate pedagógico acatando a ideia de que basta garantir a aquisição de computadores, ferramentas digitais e acesso à internet. É necessário entendermos as limitações da virada digital e as possibilidades emancipatórias do trabalho pedagógico presencial, tratados em artigo anterior do Grupo GESTOR (Clique aqui), Neste momento histórico, é imprescindível entender, como chama atenção Antunes (2018), que há forças ideológicas, de corte de classe neoliberal, pesando em favor dos interesses imediatistas do mercado e objetivando a construção de uma nova sociabilidade. E que a admissão acrítica de atividades informacionais-digitais, possibilitará ofensivas do capital no que tange a subsunção do trabalho ao mundo maquínico e o avanço crescente da participação do trabalho morto nas cadeias produtivas globais geradoras de valor.
Tecnologia educacional e EaD - o fetichismo da tecnologia e o neotecnicismo na Educação
A partir da década de 90, países periféricos como o Brasil foram intimados por organismos internacionais multilaterais (Banco Mundial, FMI, UNESCO) a implementarem reformas liberalizantes e privatizantes de estado mínimo. Nesse quadro, inserem-se as políticas públicas para a educação e as relacionadas para a instalação da EaD, a qual foi regulamentada no país pela LDB. Atualmente, com a pandemia de COVID-19, há uma ofensiva de interesses privatistas para o aumento da produtividade e da extração de mais-valor a partir da massificação da digitalização da educação por meio de plataformas e ferramentas de ensino remoto. Com isso, pretende-se estabelecer na educação uma racionalidade tecnológica, uma relação instrumental entre homem e máquina no ideário contemporâneo. Sendo assim, de acordo com Antunes (2018), na nova ordem do capital, a linguagem informacional-digital cumpre a função de garantir, no nível material, os interesses econômicos das corporações de tecnologia e, no nível simbólico, propagar os valores, a ideologia, a visão de mundo dos que estão no "andar de cima": a classe dirigente financeira.
A mercadoria (a tecnologia) assume apenas uma relação entre coisas. No entanto, há um processo de ocultação das relações sociais de produção e dos valores da produção industrial que condicionam a mercadoria tecnologia. Ou seja, a tecnologia (as plataformas digitais, os artefatos tecnológicos, o ensino remoto) não é neutra e sim resultado de relações políticas e sócio-históricas. Buscando mascarar essas relações, a educação digitalizada é reificada, a tecnologia é fetichizada, adquire consciência social própria, em um processo que tem sido denominado fetiche da tecnologia (FEENBERG, s/d).
A Pandemia de Covid-19 está servindo ao propósito de fazer passar "a boiada" da EaD no Brasil. E este processo vem se consolidando através da defesa do Ensino Híbrido, pressionado por donos de estabelecimentos de ensino privado a partir da defesa do retorno das aulas presenciais, durante a Pandemia, com protocolos que envolvem ensino presencial e atividades a distância mediadas por tecnologias digitais, com atividades assíncronas e síncronas, às custas de mais intensificação do trabalho docente, De acordo com Saviani (2011), é trazido à tona um novo tipo de produtivismo e técnicismo, para além das meras destrezas físicas treináveis do fordismo/ taylorismo. De acordo com o autor, a educação nesses moldes, advoga uma reordenação no processo educativo onde o aluno deve aprender a estudar (aprender a aprender), e deve buscar conhecimento por si mesmo, investindo na sua própria formação para garantia de empregabilidade, ou seja, enxergando a educação como capital para desenvolvimento humano.
Como alternativa, Mészáros (2005) propõe que as várias instâncias sociais em conjunto com a educação podem “criar um meio de “contrainternalização ou contraconsciência”, que seja capaz de romper com a lógica do capital de forma duradoura e concreta”. Milton Santos, em entrevista para o documentário O mundo global visto de cá (Clique aqui), exemplifica como as tecnologias da informação e da comunicação podem favorecer projetos emancipatórios, no sentido apontado por Mészáros (2005), para a maioria da população que sofre, continuamente, o processo de expropriação de suas condições de vida, pelo capitalismo.
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
CARVALHO, Maria Regina Viveiros de. Perfil do professor da educação básica. Brasília, DF: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2018.
FEENBERG, Andrew. Do essencialismo ao construtivismo: a filosofia da tecnologia numa encruzilhada (s/d). Tradução de Newton Ramos de Oliveira. Disponível em:
KENSKI, V. M.; KENSKI, V. W. EaD como opção educacional de baixo custo. In: Censo EAD.BR: relatório analítico da aprendizagem a distância no Brasil 2017. ABED – Associação Brasileira de Educação a Distância. Curitiba: InterSaberes, 2018, p. 27-29.
MATTOS, M.C. C.; SILVA, M. C. R. F. da; Marco Regulatório da Educação à Distância no Brasil de 1990 a 2018: uma Análise Histórico–Crítica. EaD em Foco, 2019; 9(1) pp. 1-13.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
OLIVEIRA, Dalila Andrade. A reestruturação do trabalho docente: precarização e flexibilização. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 89, p. 1127-1144, Set./Dez. 2004.
PISTRAK, Moisey M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011.
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