terça-feira, 30 de junho de 2020

Ensino Remoto em home office e flexibilização do trabalho docente – algumas notas sobre precarização, intensificação e adoecimento





Katharine Ninive Pinto Silva
Thamyrys Fernanda Cândido de Lima
Sayarah Carol Mesquita dos Santos
Larissa dos Santos Estevão
Everaldo José da Silva Lima

Grupo Gestor - Pesquisa em Gestão da Educação e Políticas do Tempo Livre/ UFPE


A aprovação de duas leis em 2017, sancionadas pelo governo golpista de Michel Temer, a 13.429 (Clique aqui) (a chamada Lei das Terceirizações) e a 13.467 (Clique aqui) (a lei da Reforma Trabalhista), aprofundaram o processo de contrarreforma trabalhista dos últimos anos. A extinção do Ministério do Trabalho na gestão Bolsonaro, a partir de 2019, ilustra o redesenho do projeto de destruição dos direitos trabalhistas.
No entanto, o trabalho não morreu. De acordo com Antunes (2018), o trabalhador continua sendo trabalhador, quer seja no chamado "trabalho sujo" da exploração dos recursos materiais ou do chão das fábricas, quer seja no chamado "trabalho limpo" dos escritórios e dos home offices. A exploração e a espoliação do trabalhador estão se agravando, não desaparecendo (ANTUNES, 2018).
A adoção de medidas direcionadas ao isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 e a ausência de vacina e tratamento efetivos, vem aumentando o número de trabalhadores realizando trabalho remoto a partir de suas casas. Esse é o caso dos professores que, de uma hora para outra, passaram a ter que adequar o seu lar, seus equipamentos e sua vida ao ensino remoto. 
De acordo com Rosso (2017), na educação está um dos exemplos mais profundos de flexibilização laboral: trabalhou uma hora, recebeu por uma hora. Neste momento, não são raros os casos de professores que estão com contratos suspensos ou sem a possibilidade de exercer a profissão devido aos contratos flexíveis, já que foi aberta a possibilidade da terceirização das atividades fins no Brasil, que aprofunda ainda mais essa flexibilização.
A partir desses elementos, este texto busca problematizar como, no contexto da Pandemia, se apresentam as questões da precarização, intensificação e adoecimento no trabalho docente no contexto brasileiro.

Flexibilização laboral do trabalho docente e os números da intensificação no contexto da Pandemia

Cada vez mais a lógica da acumulação flexível introduzida na organização do trabalho, com base no toyotismo, vem contagiando a organização do trabalho nas instituições de ensino. De acordo com Antunes e Pinto (2017), o trabalho docente vem recorrendo ao recurso da adaptação dos currículos, da polivalência e da adição de tecnologias digitais e de informação. No contexto atual, diante da necessidade de isolamento social para conter a Pandemia, o trabalho docente passa a lidar com novas dificuldades citadas por Antunes (2018) em relação aos trabalhos on-line: formas modernas de escravidão (digital) e dificuldades em separar o tempo de vida no trabalho e fora do trabalho. 
Buscando regular essa questão, o GT COVID 19 da Procuradoria Geral do Trabalho/ Ministério Público do Trabalho, emitiu a Nota Técnica 11/2020 (Clique aqui) buscando estabelecer diretrizes a serem observadas por estabelecimentos de ensino, durante esse período, para garantir a saúde e demais direitos fundamentais de professores e professoras que estarão exercendo suas atividades laborais por meio de plataformas virtuais, trabalho remoto e/ou em home office. Dentre as principais recomendações, destacaremos: o direito à irredutibilidade dos salários; a observância da jornada laboral diária (8 horas) e semanal (44 horas); a realização de acordos coletivos com a categoria; o princípio de liberdade de cátedra; a necessidade de garantir condições de trabalho, incluindo custeio de equipamentos ou ressarcimento por gastos do docente para realização das atividades; ética digital em relação ao direito de imagem, direito da personalidade e direitos autorais, bem como estabelecer medidas de segurança da informação, dentre outras questões.
Esta nota se torna mais necessária considerando que, de acordo com Antunes (2018, p. 148):

O cumprimento das metas estabelecidas, que implicam o aumento da intensidade do trabalho e da produtividade, não vem acompanhado de nenhum compromisso, por parte das corporações, para a melhora das condições de trabalho, como limitação da jornada, ritmo de produção ou outros instrumentos que preservem a saúde do trabalhador.

Estamos lidando com novas questões que ampliam a flexibilização do trabalho docente. Uma dessas questões diz respeito à intensificação do mesmo. De acordo com Rosso (2017), intensidade diz respeito ao "grau de envolvimento do trabalho humano no processo laboral" (p. 95) e "[...] ocorre em razão inversa ao alongamento da jornada. [...] a essência da intensificação do trabalho está naquilo que realmente ela é: 'maior quantidade de trabalho'" (p. 106). Em jornadas flexíveis, intensificação do trabalho é acompanhada, de acordo com Rosso (2017), por instabilidade de contratos, maior eventualidade e jornadas fora dos dias e horários convencionais de trabalho. De acordo com Rosso e Cardoso (2015) a intensificação do trabalho é um conceito em construção, mas que ele está relacionado ao aumento da produção e de mais-valor, no tempo gasto, no esforço físico e mental do trabalhadores, seja em jornadas de trabalho ampliadas ou não.
Em 2010, eram 8 milhões de professores no Brasil, considerando todos os níveis e modalidades de ensino público e privado. Desses, de acordo com Rosso (2017), quase 3 milhões encontravam-se em condições laborais com jornada inferior a quarenta horas semanais o que, para o autor, significa uma jornada abaixo do esperado (jornada integral de 40 a 44 horas semanais). Isso porque a carga horária inferior também significa remuneração inferior, na maioria dos casos. O autor cita um aumento no número de professores com jornada integral, entre 2000 e 2010. Provavelmente esse aumento se deu a partir da regulamentação da Lei 11738/2008 (Clique aqui) que institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica.
Em publicação anterior (Ensino Remoto durante a Pandemia de Covid-19: com a palavra os docentes brasileiros) (Clique aqui), tratamos de descrever como os professores estão avaliando o contexto atual. Questões como ausência de formação e de estrutura e equipamentos, por um lado e, por outro, aumento das cobranças e necessidade de maior investimento de tempo, inclusive em horários incomuns de trabalho ou fora do horário de trabalho, foram bastante presentes. Além disso, quase 60% dos professores consideram que a jornada de trabalho está bastante intensa e, mais de 70%, avalia que o trabalho remoto é ainda mais estressante do que as atividades presenciais de antes da Pandemia.
Ao analisarmos os números considerando os níveis de ensino em que esses professores atuam, percebemos que não há, neste caso, grandes diferenciações quando o assunto é trabalho remoto para a intensificação do trabalho dos professores. E, assim como o observado por Rosso (2017), também identificamos uma grande tendência a um processo que podemos chamar de auto intensificação, ou seja, os docentes acabam interiorizando esse processo, não percebendo o quanto é preciso estabelecer uma pauta de reivindicações para garantir os limites. A nota Técnica 20/2020 do Ministério Público do Trabalho é uma importante ação para desnaturalizar esse processo, amplificado pela inserção das tecnologias de informação e comunicação (TICs). 

Flexibilização laboral do trabalho docente e os números da precarização no contexto da pandemia

Em tempos de desemprego estrutural que, de acordo com Antunes (2018) é decorrente da hegemonia da "lógica financeira", que investe em permanente inovação no sentido de tornar a força de trabalho de homens e mulheres obsoleta e descartável (ANTUNES, 2018; HARVEY, 2016), os trabalhadores e trabalhadoras são empregáveis de curto prazo, por meio de formas de contrato precárias, terceirizadas, informais. De acordo com Antunes (2018), "o objetivo é o de incrementar os mecanismos e formas de extração do sobre trabalho, de sujeição e divisão dos trabalhadores e das trabalhadoras" (p. 172).
Ainda do ponto de vista trabalhista, é preciso chamar atenção para as medidas empreendidas no bojo da pandemia, que buscam regulamentar o trabalho no estado de calamidade pública, sob o discurso governamental bolsonarista de que são medidas que objetivam a preservação do emprego. No entanto, as medidas provisórias nº 927/2020 (Clique aqui) e nº 936/2020 (Clique aqui), instituíram a redução da jornada de trabalho, redução salarial e suspensão de contratos, demonstrando que nesse cenário o que vigora é a salvação dos lucros das empresas, acumulando ainda mais a exposição da população pobre, sobretudo a periférica.
            Além do aumento das modalidades de trabalho terceirizadas, temporárias, flexíveis e precarizadas que afetam a condição de labor e vida dos trabalhadores e de medidas adotadas para “salvar os empregos” durante a Pandemia, os primeiros meses de 2020 têm revelado números preocupantes em relação ao desemprego no Brasil. Dados do DIEESE (Clique aqui) revelam que, em abril de 2020, foram fechados 861 mil vínculos de emprego. De acordo com esses dados, os setores do comércio e o de serviços foram os mais afetados, em números absolutos.
            Em publicação anterior (Ensino Remoto durante a Pandemia de Covid-19: com a palavra os docentes brasileiros) (Clique aqui), mesmo sendo, a maior parte dos docentes que responderam à nossa pesquisa, funcionários públicos estatutários, mais de 30% é contratado da rede privada com carteira assinada e mais de 30% tem formas de contratação informais ou temporárias com a rede pública. Além disso, como mais um elemento de precarização, quase 60% dos docentes que estão realizando atividades remotas revelou não ter recebido nenhum tipo de formação ou preparação e, entre os que receberam, a maior parte denuncia que as formações são aligeiradas e inadequadas. Em nenhum caso foi garantida a infraestrutura adequada para o ensino remoto em home office, como orientado pela Nota Técnica 11/2020 do Ministério Público do Trabalho (Clique aqui).
Antunes (2018) discute a ascendência de um novo perfil de trabalhador na realidade do mundo do trabalho, através da intensificação dos aparatos tecnológicos e informacionais nas relações laborais. Antunes (2018) considera esse novo trabalhador como novo proletariado da era digital. Ele conceitua dessa forma porque considera que o conceito de classe trabalhadora incorpora um conjunto de trabalhadores informais, intermitentes ou temporários, uberizados e flexíveis que inclui e aprofunda o uso dos meios digitais para operarem no processo de divisão do trabalho, na produção de mais-valor e expansão do capital. 
Antunes (2018) faz referência também a um fenômeno denominado "pejotização" do trabalho, que ocorre em várias profissões, inclusive entre os professores. Trata-se do estabelecimento de uma relação de trabalho sem contrato de longa duração, de "frilas fixos", freelancers que se tornam permanentes. Muitos destes atuando através de tele trabalho e/ou home office.

Adoecimento no trabalho pré e pós pandemia - a questão do docente

Os impactos causados pela nova morfologia do trabalho, provenientes do trabalho flexível e das suas formas de controle laboral sobre o trabalho docente não são novas. No entanto, ganham novas dimensões e aprofundamento nesse cenário de crise estrutural do capital e de crise sanitária sem precedentes, atingindo a vida de trabalhadores e trabalhadoras.
Autores como Antunes (2018) e Alves (2012) já anunciavam que a nova morfologia social do trabalho flexível e suas formas de controle laboral, têm impacto disruptivo no metabolismo social do homem-que-trabalha, destruindo o corpo produtivo, sua subjetividade e elevando exponencialmente os casos de adoecimentos psíquicos vivenciados na cotidianidade do trabalho. De acordo com Antunes (2018), também em relação às condições de trabalho dos professores (assim como de trabalhadores de call center e telemarketing), “proliferam as LERs, o assédio moral (essa nova forma de controle e dominação dissimulada), o adoecimento e os padecimentos de todo corpo produtivo, físico, psíquico, mental” (p. 175). O contexto da pandemia trás um efeito imediato nas condições de trabalho docente, podendo haver uma redução do tempo de vida ao tempo de trabalho, através do ensino remoto em home office, com o deslocamento para o ambiente doméstico.
Uma notícia divulgada recentemente por um veículo da mídia, o Dever de Classe (Clique aqui), aponta que os docentes estão entre os profissionais mais vulneráveis ao Covid-19. De acordo com o médico Adalton N B Silva, especialista consultado, grande parte dos docentes tem inúmeras doenças ocasionadas pelo exercício da sala de aula que, por si só já é um espaço propício à propagação do Coronavírus, tais como: problemas na garganta, doenças respiratórias, hipertensão, diabetes, dores nas costas, esgotamento físico e mental e depressão, como agravos decorrentes da profissão. Mas, também no que se refere ao exercício laboral docente por meio de ensino remoto em home office, o aspecto da saúde do trabalhador precisa ser considerado em melhores condições ergonômicas de trabalho; em uma maior quantidade de pausas para diminuir os efeitos do tempo de tela; de formas de garantir a socialização com os pares e de preservar os direitos da profissão no que diz respeito à liberdade de cátedra e aos direitos autorais e da personalidade, como detalhado na Nota 11/2020 do Ministério Público do Trabalho, anteriormente citada.
Diante do desrespeito à essas condições de trabalho remoto em home office, considerando nossa publicação anterior (Ensino Remoto durante a Pandemia de Covid-19: com a palavra os docentes brasileiros) (Clique aqui), são questões que afligem os docentes: ansiedade, medo ou angústia (79,3%); insônia (46,7%) e tristeza persistente (18,5%). Além dos aspectos emocionais, também foram citados problemas de saúde em decorrência da intensificação do trabalho, ou seja, para desenvolver trabalho remoto, há  necessidade de se dedicar mais tempo para preparação de aulas ou participação em atividades na frente das telas (computador, celular, tablets). 

Trabalho remoto na Educação - possíveis efeitos em relação à educação pós-pandemia

Apesar da imensa transformação em nosso cotidiano provocada pela necessidade do isolamento social para conter o Covid-19, foi possível observar o avançado estado em que já se encontravam alguns processos. A crise sanitária serviu para aumentar o ritmo de implementação da estratégia de crescimento dos setores que atuam por meio das tecnologias digitais, diante da crise de decomposição em que se encontra enredado o imperialismo.
No âmbito da educação, as pressões para a implementação do ensino remoto em todos os níveis de ensino não podem ser justificadas apenas diante do contexto da pandemia, já estavam em desenvolvimento e com certeza trarão consequências futuras. Está em curso um processo de padronização e alinhamento de materiais didáticos e de plataformas de conteúdos, em meio a um aprofundamento das formas de privatização com financiamento público de que trata Adrião (2018). Um grande mercado em expansão já vinha sendo gestado e agora ganha uma maior expressão, com o fortalecimento das empresas que formam a chamada GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) sobre a educação pública brasileira (Clique aqui), a ponto de quase 65% das instituições públicas de ensino, hoje, ter os e-mails profissionais delegados a empresas privadas como Google e Microsoft.
Tais elementos trazem a tona o neotecnicismo (SAVIANI, 2007) nesse ensaio e improviso de alternativas diante da Pandemia de COVID 19, com potenciais impactos catastróficos para a educação: aceleração das formas de privatização e desprofissionalização ou rebaixamento profissional docente, bem como a substituição da mão de boa parte da mão de obra docente por estratégias de Educação a Distância cada vez mais robotizadas (a exemplo da demissão em massa ocorrida recentemente pela empresa Laureate). E, como consequência, rebaixamento da qualidade do ensino acessado pela maioria da população.
Isso não quer dizer que os fatos estão dados e, portanto, não resta saídas e alternativas. A história é movimento, feita de avanços e recuos, mudanças e permanências, repleta de contradições e, nessa perspectiva, é necessário não só construir uma política de defensiva contra os ataques na educação, mas também se exige uma postura de ofensiva  perante  às políticas de retrocesso em curso, que possa envolver diversos setores da classe trabalhadora e articule suas lutas por mudanças vitais e estruturais, imprescindíveis, urgentes e possíveis nos dias de hoje. O educador precisa ser ouvido e considerado no processo revolucionário. Para tanto, é preciso garantir direitos, defender espaços de luta coletivos, garantir espaços de socialização e formação durante a pandemia. 

Referências
ADRIÃO, Thereza. Dimensões e formas da Privatização da Educação no Brasil: caracterização a partir de mapeamento das produções nacionais e internacionais. Currículo sem Fronteiras, v. 18, n. 1, p. 8-28, jan/abr, 2018.
ALVES, Giovane. Trabalho docente e precarização do homem-que-trabalha. Blog da Boitempo, 2012. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2012/11/16/trabalho-docente-e-precarizacao-do-homem-que-trabalha/. Acesso em: 5 dez. 2018.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
ANTUNES, Ricardo; PINTO, Geraldo. A Fábrica da Educação: da especialização taylorista à flexibilização toyotista. São Paulo: Cortez, 2017.
HARVEY, David. 17 Contradições e o fim do capitalismo. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
ROSSO, Sadi Dal. O Ardil da Flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
ROSSO, Sadi Dal; CARDOSO, A. N. M. Intensidade do Trabalho: questões conceituais e metodológicas. Revista Sociedade e Estado, Vol. 30, nº 3, set/dez, 2015.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Autores Associados: Campinas, 2007. 

Um comentário:

O livro Desafios da política educaional para o Ensino Mèdio e para a qualificação profissional no Brasil ( Clique aqui )  trata da temática ...