terça-feira, 14 de julho de 2020

Educação para além do fetichismo da tecnologia



Katharine Ninive Pinto Silva
Emanuelle de Souza Barbosa
Sayarah Carol Mesquita dos Santos

Grupo GESTOR – Pesquisa em Gestão da Educação e Políticas do Tempo Livre

Introdução

O isolamento social imposto em 2020, no mundo inteiro, pela pandemia de COVID-19 e pela ausência de vacina ou tratamento para a doença, como forma de buscar garantir uma diminuição dos óbitos através da tentativa de não sobrecarregar os Sistemas de Saúde, tem tido rebatimento nas relações econômicas e nas relações sociais. No âmbito da Educação, as inovações tecnológicas que já vinham sendo criadas encontraram vasto campo para atuação e não tardaram a surgir como opção para Redes Estaduais, Redes Municipais, Rede Federal e para as Escolas Privadas (mesmo para as menores ou as mais afastada dos grandes centros). Não tardaram a surgir também as consultorias voltadas a ajudar a gerir a utilização dessas tecnologias.
Em escala mundial formou-se, inclusive, uma Coalizão Global da Educação (Clique aqui), composta por organismos internacionais e por empresas ligadas ao chamado GAFAM ou Big Five (Clique aqui), voltada para incentivar a utilização de tecnologias, bem como de outras múltiplas formas de garantir a "entrega de conteúdo", durante a Pandemia. Muitas destas formas, aliás, às custas da ampliação da exploração do trabalho dos professores, como já tratamos em outro estudo (Clique aqui).
É inegável que as novas tecnologias de informação e comunicação existem e contribuem para uma maior rapidez e diversidade desses processos o que, inclusive, chega a atrapalhar a possibilidade de reflexão crítica sobre as mesmas. No entanto, não é possível considerarmos com naturalidade a intervenção pedagógica a que essas inovações se propõem e seus efeitos sobre o trabalho pedagógico e o trabalho docente. Não devemos aceitar qualquer interferência neste sentido. Andrew Feenberg (s/d) chama atenção, através do conceito de fetiche da Tecnologia, para o fato de que a tecnologia não é neutra, eterna e a-histórica. De acordo com o autor, a tecnologia é uma construção histórico-social, permeada pela luta de classes. E aí uma questão se coloca: é possível uma educação emancipadora utilizando as novas tecnologias? 
Para responder a essa questão, o Grupo GESTOR - Pesquisa em Gestão da Educação e Políticas do Tempo Livre apresenta um estudo em que busca problematizar essa questão, apresentando as principais armadilhas que precisamos, como educadores, desarmar, no sentido da garantia de uma educação emancipadora.

Uma educação emancipadora como uma educação para além do capital 

Para desenvolver uma educação emancipadora é necessário entender o papel da educação nas relações sociais. É preciso compreender que uma educação alinhada com as transformações sociais precisa contribuir para a superação da sociabilidade capitalista, pautada na exploração do Trabalho pelo Capital, no sentido de contribuir para uma sociedade humanamente emancipada, livre, consciente e coletiva na produção e distribuição das riquezas. 
A educação, como uma atividade humana e social que permite a formação de valores, conhecimentos e habilidades nos indivíduos, possui um caráter essencial no curso das mudanças sociais, revelando a possibilidade de desenvolver a consciência de classe dos trabalhadores num sentido amplo. Para tanto, é preciso enxergar a educação para além dos seus limites formais e institucionais ordenados pelo Estado burguês, que busca operacionalizar os interesses produtivos e ideológicos do capitalismo. Portanto, é preciso pensar uma educação para além do seu sentido estrito, isto é, para além do modelo de produção capitalista, para além do Capital. 
De acordo com Mészáros (2005), no capitalismo a educação funciona como um sistema de internalização dos conhecimentos, valores e culturas funcionais à reprodução da (des)ordem do metabolismo social do capital. Uma educação no sentido para além do capital, para o autor, deve ser entendida e defendida como voltada para a criação (educar para a vida) e não para o negócio (educar para o mercado). Essa educação proposta por Mészáros (2005), considera a contribuição gramsciana de defesa de uma educação crítica e emancipadora que coloca fim à separação Homo Faber versus Homo Sapiens. Dessa forma, para além do acesso à escola, é preciso superar os processos de exclusão educacional dentro da escola e a realização de práticas educacionais que permitam aos educadores e estudantes a realização de uma educação emancipada.
Gramsci (2000), nos cadernos do cárcere, ao tratar dos intelectuais e o princípio educativo, defende que a solução para a educação envolve:
[...] escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento de capacidades de trabalho intelectual. Desse tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo (p. 33-34).
            Gramsci (2000) defende uma escola única de formação humanista, ou de cultura geral, que desenvolva uma formação omnilateral e que garanta que o estudante seja capaz de desenvolver, com o passar dos anos de escolarização, uma certa autonomia na orientação e na iniciativa. Tal formacão, para Gramsci (2000), pressupõe que o Estado assuma as despesas necessárias. Aquilo que Freitas (2018) atualiza como a necessária defesa de uma escola pública com gestão pública.
            Do ponto de vista da prática pedagógica, já temos a referência da Pedagogia Histórico-Crítica para orientar uma educação no sentido da emancipação humana. Proposta por Saviani e defendida por diversos pesquisadores da área de educação, esta pedagogia entende a educação como posta em mediação, no interior da prática social, na qual deve ser compreendida em suas possibilidades de construir alternativas de enfrentamento e resistência. Na defesa de uma escola pública, gratuita e de qualidade e na defesa do acesso dos trabalhadores aos conhecimentos científicos e culturais acumulados historicamente pela humanidade. 
A escola e os processos que se desenvolvem nela são apenas uma das formas que a educação pode atuar. Duas questões fundamentais se colocam nesse sentido e são cruciais para entendermos a complexidade desse processo. Essas questões podem ser problematizadas a partir de duas teses de Marx sobre Feuerbach (das 11 teses) (Clique aqui):
Tese 3 – A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionante.
Tese 11 – Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.
O papel dos educadores, que também precisam ser educados, deve caminhar no sentido de superar a visão ingênua sobre a realidade social e ampliar a visão crítica sobre os processos de dominação ideológica da burguesia frente à educação. Desvelar o longo processo que a educação escolar vem seguindo, pelo menos nos últimos 150 anos, conforme nos chama atenção Mészáros (2005), de “fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital” e “transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes” (p. 35). A importância da escola, como práxis revolucionária passa, primeiramente, no entanto, por entendermos que “[...] a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipatória radical” (MÉSZÁROS, 2005, p. 45). Essa contradição fundamental permite pensarmos soluções essenciais e não apenas formais. Essas soluções essenciais devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida, substituindo as formas de internalização mistificadora por uma alternativa concreta abrangente. Ou seja, realizarmos atividades de “contra-internalização”.
Nesse sentido, a tarefa educacional não é a de formar sujeitos acríticos e enquadrados para atender à lógica do capital, nem tampouco moldá-los pela ótica do mercado e de suas determinações. A finalidade da educação é contribuir com a transformação social, ampla e emancipadora.

Desafios para a superação do neoprodutivismo e suas variantes na educação

       Os desafios que estamos enfrentando em relação aos rumos que a educação brasileira vem tomando são anteriores à Pandemia de COVID-19. Dizem respeito ao que Saviani (2011) denomina de neoprodutivismo e suas variantes (neoescolanovismo, neoonstrutivismo, neotecnicismo) que, na esteira do neoliberalismo, vem fortalecendo os laços ideológicos das escolarização formal com os interesses do Capital.
        O Brasil vem aprofundando as reformas administrativas, trabalhistas e previdenciárias do rigoroso programa de equilíbrio fiscal do chamado Consenso de Washington para a América Latina. A adesão a este ponto e a outros da agenda do Banco Mundial vem gerando o aprofundamento da “pedagogia da exclusão”, mas agora em novas bases, já que o processo de reconversão produtiva gera a necessidade de uma educação escolar para garantir a formação dos trabalhadores de acordo com as exigências da produção a partir do modelo toyotista: flexíveis, polivalentes, com domínio de conceitos gerais e abstratos. Dessa forma, de acordo com Saviani (2011), “manteve-se, pois, a crença na contribuição da educação para o processo econômico-produtivo, marca distintiva da teoria do capital humano. Mas seu significado foi substantivamente alterado” (p. 429). O significado atual está em torno do conceito de empregabilidade, em que há uma transferência de responsabilidade para o indivíduo em adquirir os meios que lhe permita ser competitivo no mercado de trabalho, para os empregos disponíveis diante de um desemprego estrutural.
     Dessa forma, de acordo com Saviani (2011), essa “pedagogia da exclusão” se dá a partir do fato de que essa formação, diante do desemprego estrutural, vai acenar ideologicamente para os empregos formais disponíveis, mas para a tentativa de escapar da exclusão através de uma inclusão no trabalho flexível, como “microempresário”, trabalhador informal “empresário de si mesmo”, trabalho terceirizado, voluntário, etc. Nesse sentido, as bases pedagógicas passam a se constituir a partir da revisão teórica feita pelos organismos internacionais que gerou o que Saviani (2011) denomina como neoescolanovismo, com base na ressignificação do lema “aprender a aprender”. De acordo com Saviani, essa orientação se apresenta no Relatório “Educação um tesouro a descobrir” (Clique aqui), mas também vai ser adotada no Brasil, inicialmente através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (Clique aqui). Nesse documento, publicado em 1997, fica clara a opção do Brasil por esse novo objetivo de educação, no sentido da aquisição de competências e saberes num contínuo processo de educação permanente a que chamam de “aprender a aprender”.
        Para tanto, de acordo com Saviani (2011), as bases psicopedagógicas que sustentam essa nova perspectiva de educação fundamentam-se numa revisão do neoconstrutivismo apresentada a partir da disseminação da “teoria do professor reflexivo”, com grandes elos com a chamada “pedagogia das competências”. Com isso, há uma valorização dos “saberes docentes centrados na pragmática da experiência cotidiana” (p. 436). A “pedagogia das competências”, de acordo com Saviani (2011), é uma outra face da “pedagogia do aprender a aprender”, tendo como objetivo principal “dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas” (p. 437). Para tanto, as bases pedagógico-administrativas se dão através da reorganização das escolas e da redefinição do papel do Estado que vai se dar através de outra revisão, chamada por Saviani (2011) de neotecnicismo.
           Em Escola e Democracia, Saviani resumiu o problema do educador (na década de 1980) da seguinte forma: trabalha em condições tradicionais, internalizou o ideário escolanovista e sofre pressões pedagógico-administrativas tecnicistas. Atualizando para o contexto atual, as condições continuam tradicionais (com pitadas do chamado “novo normal” a partir da necessidade de isolamento social em função da Pandemia), o ideário (neo)escolanovista do aprender a aprender agora se coloca com maior carga na chamada “entrega de conteúdos”, da forma como for possível, e as pressões (neo)tecnicistas se apresentam através do fetiche dos aplicativos e plataformas digitais e de extremo monitoramento, controle e expropriação do trabalho docente que essas tecnologias digitais permitem aos empregadores (públicos e privados).
Como forma de garantir a formação de acordo com as exigências do mercado, a ênfase na avaliação busca garantir a eficiência e a produtividade. Dessa forma, “trata-se de avaliar os alunos, as escolas, os professores e, a partir dos resultados obtidos, condicionar a distribuição de verbas e a alocação dos recursos conforme critérios de eficiência e produtividade” (SAVIANI, 2011, p. 439). A importância dada a essa dimensão é tão grande que verificamos a dificuldade dos gestores em abrir mão das avaliações em larga escala e das atividades avaliativas que vêm recheando as plataformas de ensino diariamente. Outra expressão pra esse tipo de educação é que esta se baseia numa “cultura de auditoria” em que alunos, professores, escolas e redes de ensino têm que provar que aprenderam o tempo todo. Num processo competitivo e acirrado que cultua competição e os rankings se transformam em possibilidades de negócios ou em possibilidades eleitorais.
No sentido das reformas neoliberais, interessadas na redução dos “custos” e na disputa do Fundo Público da Educação pelos chamados Reformadores Empresariais, as iniciativas em torno de flexibilização de uma parte da carga horária dos cursos presenciais já vinham acontecendo desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996) (Clique aqui), através da previsão de ensino a distância como complementação à aprendizagem ou em situações emergenciais no ensino fundamental (Art. 32, §4º). Mais tarde, a chamada Lei da Reforma do Ensino Médio (13.415/2017)  (Clique aqui) incluiu no Art. 32 da LDB o §11: “Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório saber” mediante uma série de formas de comprovação, dentre elas cursos por meio de educação a distância.

Desafios para uma educação para além do fetichismo da tecnologia na educação

O atual estágio de desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e comunicação tem tornado cada vez mais provável o confronto com experiências até então restritas aos roteiros de ficção científica no estilo de Black Mirror. Em um episódio específico desta aclamada série as pessoas são avaliadas através de condutas na vida pública, resultando em uma cadeia de hierarquizações sociais pautada nas avaliações feitas com base em padrões de comportamento, aparência e estilo de vida. Nada tão diferente assim do que já acontece com a política de likesem redes sociais. E são justamente redes sociais como o Facebook que estão no centro de escândalos envolvendo acusações de fraudes eleitorais no mundo não fictício.
Foi amplamente divulgado o caso da Cambridge Analytica que utilizou, sem consentimento dos usuários, dados de aproximadamente 87 milhões de perfis do Facebook  para direcionar propaganda política. De acordo com Bruno (2018), a via de acesso à conta destes usuários se deu através de um teste de personalidade chamado thisisyourdigitallife que foi ofertado como um aplicativo do Facebook. É cada vez mais usual a utilização de dados produzidos em redes sociais ou em aplicativos para colher informações e, a partir disso, induzir comportamentos altamente rentáveis às empresas que extraem seus lucros deste tipo de negócio.
As formas atuais de investimento tecnocientífico na captura, análise e utilização de informações emocionais e psíquicas, seja para vender produtos, fidelizar clientes ou internalizar comportamentos, é chamada de “economia psíquica dos algoritmos” (BRUNO, 2019).  Estes processos compõem a paisagem do capitalismo atual que conseguiu submeter experiências de utilização da internet a um novo, e lucrativo, modelo de negócios. Zuboff (2018) informa que o sucesso desta lógica comercial está atrelado a um “capitalismo de vigilância” dependente da comercialização de dados.
O atual processo de extração de mais-valia, alcançado com as tecnologias digitais de informação e comunicação, confirma a assertiva formulada por Harvey (2016) de que as inovações tecnológicas se transformaram em objeto de fetiche do desejo capitalista. Segundo o autor, o capitalismo tende a se alimentar das vantagens apresentadas pelas tecnologias para garantir uma maior extração de lucros. No entanto, é preciso reconhecer que esse processo está calcado em bases contraditórias capazes, simultaneamente, de facilitar a aceleração de circulação do capital e arranhar, por exemplo, o controle sobre o monopólio dos meios de comunicação. Por isso, afirmamos que a análise realizada sobre as inovações tecnológicas não pode deixar de fora as forças contraditórias presentes na sociedade.
Podemos considerar que as mesmas tecnologias que deterioram o trabalho, acentuam a vigilância e moldam comportamentos, também podem mediar processos de resistência que causem fissuras na ordem estabelecida. É o caso do grupo de WhatsApp Corona nas Periferias uma biblioteca de mídia que reúne serviços e notícias sobre a pandemia com ênfase nas periferias e favelas. Outra iniciativa que utiliza os meios digitais para alcançar parcelas marginalizadas é o Mapa da Solidariedade em Curitiba projetado por pesquisadores da Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR), do centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo e do Observatório das Metrópoles em Curitiba é responsável por organizar dados e informações georreferenciadas sobre vulnerabilidades e ações de resistência à crise do Covid-19 na periferia. Também se faz necessário mencionar a ocupação de plataformas corporativas como o Youtube por militantes e comunicadores marxistas para tratar de questões tão rechaçadas, silenciadas e desacreditadas pela mídia hegemônica como é o comunismo.
As iniciativas mencionadas não pretendem nos fazer cair no engodo da neutralidade tecnológica ou atribuir a esta rede um peso que elas não possuem na luta pela emancipação humana. Defendemos, no entanto, que tais ferramentas são tanto uma oportunidade quanto uma armadilha para a dinâmica de lutas de classes conforme mostraram as experiências no Egito, na Tunísia e no Brasil que utilizaram redes sociais para convocar e organizar movimentos de reivindicação e insatisfação. 
O conhecido intelectual espanhol e atual ministro de Universidade da Espanha, Manuel Castells, chegou a escrever um livro indicando que o legado dos movimentos sociais surgidos em rede é o compromisso com a democracia e a instauração de uma forma de comunicação não hierárquica que confronta diretamente o poder estabelecido. Sete anos após a publicação do livro percebemos que as mesmas redes sociais que prometiam ser um espaço de elaboração, debate e organização foram também instrumentos de divulgação de informações inverídicas que acabaram, entre outras consequências, por interferir em resultados de eleições presidenciais. Este fato nos ensina que qualquer análise da realidade deve levar em consideração as determinações impostas pelo sistema capitalista e, consequentemente, com a análise das contradições que atravessam a realidade. 
Diante do exposto, retomamos Harvey (2013) uma vez mais para ratificar que os resultados oriundos da incorporação tecnológica à vida social não devem ser lançado no pântano da neutralidade tecnológica. Isto é, a tecnologia não foi criada de forma desinteressada, esse entendimento permite desarmar certas armadilhas tecnológicas que mascaram relações de fetichização, dominação e manutenção do sistema capitalista. Nesse ponto, o autor lembra que o desenvolvimento tecnológico tem como origem o modo de produção capitalista. De modo que as tecnologias foram “concebidas para interiorizar certas relações sociais, concepções mentais e modos de produzir e viver” (HARVEY, 2013 p.213). Isto significa dizer que os recursos tecnológicos foram criados para aprimorar as formas de expropriação impostas pelo capital, e a tecnologia em si não é capaz de apagar estas características. Esse pressuposto auxilia na compreensão sobre os usos e utilizações que podem ser atribuídas às tecnologias como auxiliares na luta pelo fim das formas de exploração que sustentam a sociedade atual. Essa tarefa não pode ocorrer sem a construção de um projeto emancipatório e coletivo do qual as tecnologias podem fazer parte na mediação de certos processos, mas nunca assumindo centralidade no processo.
A construção de um projeto emancipatório requer também a mobilização de saberes para criar tecnologias dentro de uma lógica social voltada à abolição do trabalho alienado referenciado em atividades livres, autônomas e autodeterminadas. Portanto, não se deve desconsiderar a criação de uma base tecnológica alternativa, comprometida com a invenção de um novo metabolismo social no qual o trabalho possa ser uma atividade pautada no efetivo atendimento das necessidades humanas e não da produção do valor.  Esse ponto nos coloca diante da necessidade de definir um projeto educativo comprometido com a emancipação humana.
Outro ponto que merece ser objeto de nossas atenções diz respeito ao futuro do trabalho docente nesse contexto de franca aceleração de inovações tecnológicas utilizadas para substituir e precarizar o trabalho docente. Dentre as muitas iniciativas comprometidas com a dilapidação do trabalho desenvolvido pelos professores citamos o caso da empresa Laureate que colocou robôs e inteligência artificial para realizar, por exemplo, atividades de correção de provas, autorizando com isso a demissão de inúmeros profissionais. O processo de substituição de trabalho vivo por trabalho morto não é novo na história do capitalismo, a novidade consiste na capacidade assombrosa de substituição de trabalho concreto por trabalho abstrato viabilizado pelos recursos tecnológicos digitais. A mercantilização tem chegado a níveis tão elevados que é até capaz de promover a substituição de atividades que até pouco tempo pareciam inalcançáveis às presas arrasadoras do capitalismo.
A automação e robotização que têm dominado a geografia industrial chegam ao território educacional também para cumprir o papel de disciplinamento dos professores e estudantes e expandir as margens de lucro das empresas do ramo educacional. Não é à toa que grupos empresariais como a Fundação Lemann, estão enxergando oportunidades de negócios em um período tão emblemático para a existência da nossa espécie quanto tem sido a Pandemia causada pelo Corona Vírus
Um exemplo ilustrativo de como o “partido” dos empresários está se organizando para transformar a pandemia em oportunidade de negócios pode ser extraído ao se analisar as ações promovidas pelo Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB). Esta associação, sem fins lucrativos, atua em apoio à formulação de políticas públicas, desenvolvendo conceitos, ferramentas e promovendo articulação entre gestores do ensino básico com grupo empresariais, tem como principais parceiros a Fundação Lemann, Instituto Natura e Itaú Social. Desde o início da suspensão das aulas presenciais em função das medidas sanitárias adotadas, a associação já produziu diversos materiais sobre ensino remoto  para “apoiar a educação pública durante a pandemia”.  Essa “boa ação” do CIEB não esconde o objetivo de apresentar recursos tecnológicos produzidas por empresas privadas para a educação pública. Eles contam com uma plataforma com mais de 400 opções de tecnologias educacionais com foco prioritário em gestores públicos.
Esses reformadores empresariais, para utilizar os termos de Luiz Carlos de Freitas, não perdem nenhuma oportunidade de impor suas reformas à educação pública e já estão se movendo rapidamente para implementar seus projetos, enquanto a maioria de nós continua perplexa diante do recrudescimento da crise aprofundada pela pandemia. O  projeto de privatização da educação pública, sustentado pela iniciativa privada, tem a chance, com a pandemia, de apressar o passo em direção da apropriação do fundo público. Nesse âmbito, o frequente entusiasmo com o qual as tecnologias são referenciadas para produzir as soluções mais adequadas ao momento vigente é o código utilizado para fazer “passar a boiada” da privatização. 
Gradativamente começam a surgir denúncias relacionadas à compra e oferta de recursos tecnológicos pelas empresas privadas. Em matéria divulgada no site “The Intercept Brasil” encontra-se a informação que a empresa IP.TV em três meses tornou-se a fornecedora de aplicativos utilizados por cerca de 7,1 milhões de alunos e professores de São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará para aulas à distância. O fato mais curioso é que  a referida empresa, ligada a políticos bolsonaristas, entregou ao público alvo um material de qualidade duvidosa com defeitos de transmissão, acesso à conteúdos conspiracionistas e política de dados sem segurança para estudantes e professores. 
Além do encolhimento curricular que é possível averiguar nas plataformas utilizadas para mediar as aulas remotas, a obsessão pela manutenção de avaliações de larga escala, a pressão exercida sobre a escola para “manter a normalidade” em um tempo de extrema gravidade, a desconsideração de que o acesso à internet no Brasil possui um importante limitador de classe social produzindo desigualdades de acesso que variam de 43% na classe C, chegando até 7% nas classes D e E, encontramos também a investida de grandes plataformas corporativistas contra a privacidade de dados dos usuários de seus serviços. 
Pesquisa realizada por acadêmicos e membros de organizações sociais que criaram o projeto “Educação Vigiada” aponta que 70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação no Brasil estão expostos aos riscos com “capitalismo de vigilância” graças a parcerias realizadas com grupos como a Google e a Microsoft. Conforme pode ser observado são muitas as evidências de que o momento atual tem sido utilizado como um laboratório para intensificar práticas predatórias no desenvolvimento da educação pública. Essas ações estão embaladas em discursos ideológicos que apelam para sentidos de modernização e inovação tecnológica como saída para os problemas educacionais. Tal discurso se estabiliza através do fetichismo tecnológico já tão bem difundido entre boa parte das pessoas que se encantaram com as promessas e facilidades viabilizadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação.  
Também é muito necessário ter em mente a desconstrução de discursos ilusórios cultivados no campo da ideológica sociedade da informação. E conforme nos ensina Newton Duarte (2003) é preciso compreender o papel desempenhado por uma ilusão na reprodução ideológica de uma formação societária específica. Nesse ponto, podemos nos perguntar sobre qual a ilusão criada na sociedade da informação e qual sua importância para que se possa compreender as formas de inserção das inovações tecnológicas no contexto escolar.

Alguns elementos conclusivos

Os discursos amplamente divulgados sobre a importância da utilização de recursos tecnológicos para garantir a superação das dificuldades impostas pela crise sanitária vivenciada inflacionam o papel das tecnologias para poder justificar processos de intensificação do trabalho docente e privatização do ensino público. Nesse ponto, cabe mencionar algumas tendências sobre o futuro da educação pública que estão sendo aceleradas em função da pandemia.
As "bem intencionadas" medidas emergenciais de contenção da propagação do vírus podem se configurar como medidas permanentes na constituição das políticas educacionais de agora em diante. No primeiro mês de pandemia, instituições associadas à redes de empresários como o CIEB, citada anteriormente, já estavam sistematizando e divulgando pesquisas on-line para coletar dados, demandas e ofertar produtos às escolas. A partir de iniciativas de entidades privadas, já capitalizadas na educação pública desde muito antes da pandemia, é possível perceber um esforço ainda mais insistente de preencher as instituições escolares com demandas que atentem diretamente aos interesses privados.
Em Nota técnica divulgada pelo Movimento Todos pela Educação (Clique aqui), entidade com grande espaço na definição das Políticas Educacionais no Brasil, a proposta de cômputo das atividades realizadas a distância durante o período de suspensão das aulas é defendida como medida mais adequada diante das dificuldades impostas pelo momento atual. Sabemos que muitas destas atividades chamadas de "ensino remoto emergencial" funcionam quase como um delivery de conteúdos que pouco se relaciona com a dinâmica de ensino e aprendizagem experenciadas em uma sala de aula. Nessa mesma publicação é possível encontrar o indicativo de continuidade de utilização de tecnologias para modernizar a escola e livrar os professores de certos tipos de trabalhos burocráticos. O problema é que na definição de trabalho burocrático cabem atividades que vão da correção de atividades até elaboração de instrumentos avaliativos.
Essa armadilha vem sendo preparada desde antes da Pandemia e encontrou o terreno necessário para estabelecer as bases da aceitação de um "ensino híbrido", condição necessária para o sucesso dessa proposta. Dessa forma, os 40% de EAD nos cursos presenciais vão sendo transformados em algo "normal" na educação brasileira, até mesmo com discursos fervorosos de educadores a favor desse tipo de ensino, considerando uma melhor escolha até mesmo do ponto de vista pedagógico. 
De nossa parte, chamamos atenção para o fato de que qualquer opção que signifique expropriação do trabalho pedagógico realizado por educadores qualificados e a substituição do processo de ensino/aprendizagem por uma perspectiva de "entrega de conteúdo" não estarão de acordo com uma educação emancipadora. Qualquer inserção de tecnologia na educação deve se dar no sentido de ajudar a desarmar armadilhas fetichistas.

Referências Bibliográficas

BRUNO, Fernanda. A economia psíquica dos algoritmos: quando o laboratório é o mundo. NEXO Jornal, Brasil, p. 1-3, 12 jun. 2018.

DUARTE, Newton. Sociedade do Conhecimento ou Sociedade das Ilusões? Quatro ensaios crítico-dialéticos em filosofia da educação. Campinas: Autores Associados, 2003. 

FEENBERG, Andrew. Do essencialismo ao construtivismo: a filosofia da tecnologia numa encruzilhada (s/d). Tradução de Newton Ramos de Oliveira. Disponível em: https://www.sfu.ca/~andrewf/books/Portug_Do_essencialismo_ao_construtivismo.pdf. 


FREITAS, Luís Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 2. Edição e tradução, COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

HARVEY, David. 17 Contradições e o Fim do Capitalismo. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

HARVEY, David. Para entender o Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

MÉSZÁROS, István. A Educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

SAVIANI, Dermeval. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2011.

ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In: BRUNO, F.  (et. al.). Tecnopolíticas da Vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. 


Um comentário:

  1. Excelente texto... além das referências utilizadas, que estão me ajudando bastante no desenvolvimento da minha pesquisa sobre "Ensino Remoto"... Muito obrigada!

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